quinta-feira, agosto 26, 2004

Perdi minha mãe

Foi tragada por uma entrada sinuosa, três moças uniformizadas a conferir-lhe a passagem... Mal pude ver suas costas, seus parcos e tintos cabelinhos de bebê, tantas eram as gotas salgadas e as pedras pontiagudas e punitivas a rolar em meu rosto.

Perdi minha mãe, talvez muito antes, quando bem cedo preferi procurar colos e seios em outros corpos de onde nunca surgiria o leite que me alimentaria de fato.

Neste instante ela voa pelo céu da cidade, entre muitos outros e suas histórias de saudades. Quem estará ao seu lado agora? A viagem é longa - ela tem medo. Eu - pavor!

Perdi minha mãe!

Estão a esperá-la no paraíso, viverá na Amazônia junto ao Tapajós.Já me disse que a terra não é tão boa, mas não duvido que fará brotar das suas também por lá. Vai assimilar a malemolência dos povos do calor. A dentadura novinha parecerá mais branca pelo bronzeado no rosto de boneca antiga. A leitura - tão ínfima quanto de costume - será menor ainda já que na véspera, perdeu seus óculos. Como se ocupará?

Terá uma tristeza encrustrada nos olhos por não ter à barra da saia todos seus filhos - humanos e vegetais, seus retalhos, suas panelas, seus potes plásticos - tão úteis, jamais usados...

Vou ficar com a lembrança dos sons de minha mãe na cozinha eta manhã. Seu ritmo, sua batucada na louça, seu arrastar de chinelos, o cheiro de café coado agorinha. Ela ralhando entre dentes com a gata alheia; tirando os bobes do cabelo. Lembrando os compromissos de outras e se esquecendo dos próprios... Esquecendo que nunca teve essa obrigação, e o faz até o último minuto, como uma questão de honra.

O brio de estar profundamente sentida e engolir o choro para não me entristecer ainda mais.

Quando conseguir parar de chorar, vou reler tudo isso e me sentir um tola. Minha mãe está logo ali, a algumas horas de viagem. Posso reencontrá-la, graças a Deus! Porém, neste momento, nem essa idéia é suficiente para calar meu coração.

terça-feira, junho 29, 2004

Não te pertenço

Sem razão, te pertenço
É o corpo que pede o seu continuamente
Os olhos devem vê-lo para não secarem
Cegos de saudade

A língua caça uma outra dentro da boca,
em vão!
Seios eriçados
Respiração travada
Sexo úmido, quente, lateja
Pés retesados
fissura...

Já a razão te repele
Ordena dicotomias

para causar colapso

Obriga desejar -
céu e terra
mar e ar
liberdade e cárcere

E passo a não pertencer a ninguém -
só à loucura, à imprudência e ao caos

quinta-feira, junho 17, 2004

Medo de mim

Confinada há tanto tempo
Que a perspectiva de liberdade já apavora
Se fosse um pouco menos sã
Estaria bem mais feliz

Poderia pensar que agora
Faria melhores escolhas
Melhores julgamentos
Ofereceria a parte certa de mim

Não o todo

por não ver a diferença.

É provável que nesse instante
não esteja diferenciando
desesperança de desespero
pavor de apatia
opção de imposição
e tantos outro equívocos...

segunda-feira, junho 07, 2004

Olhos castanhos

Não quero ser salva deste naufrágio
Desta vez. Quero conseguir permitir-me
ser inundada por teus fluidos
tomada por tudo que é teu

Tua voz, teu gosto, teu cheiro, teus dedos, teu sexo delicado

Aceitá-lo sem antes decifrá-lo
Permitir-me ser surpreendida -
por tua curva lombar perfeita,
pela temperatura reconfortante da tua saliva;
teus pêlos, por teus gestos abusados...

Ser capaz de sentí-lo no ar,
na ponta da língua, por toda pele,
nos tecidos que te envolveram...

Ter tua figura tatuada na retina
Sugar tua alma - cortante de tão pura
Sorver na fonte, teu néctar quente

Nausear de você

Ser mortalmente contaminada

Sucumbir

Finalmente repousar
Submersa
em teus profundos olhos castanhos.

sábado, maio 08, 2004

Calado

Não deixei que se pronunciasse
suas palavras atravessariam como flechas
todas as minhas barreiras

Não serei sua companheira amorosa
Você bem sente - serei sua ruína
com poder de extasiá-lo e destruí-lo

Meu jogo é arriscado
ganha quem souber usar o que tem
no momento exato

Momentos indefiníveis
sentidos apenas no sangue e
no aroma sutil dos corpos em primavera

Profundamente encantados
Por olhares, gestos, teatro mudo em sincronia
Mas que não apostam nos jogos

de palavras
de ambiguidades
de ilusões

por isso
não deixei que se pronunciasse...

quarta-feira, abril 14, 2004

Mulher

Quem rezará pela mulher-bomba?
Quem cuidará do seu lar
das compras do mês
da visita
dos filhos nem nascidos...?
da fralda, do leite, do pré e da pós

Quem deitará com a mulher-bomba?
Que suicída?
O cadáver putrefato?
A Geni?

Quem?