terça-feira, abril 17, 2007

DERRAMANDO-SE

"As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não." Manuel Bandeira em "Arte de Amar"

de F. Carpinejar

Raramente uso a palavra alma. Alma é uma facilidade. Como se a pronunciando, já estamos sendo profundos. Minha mãe fica ofendida: diz que sou desalmado. Não é verdade, até o musgo tem alma. O musgo da escadaria de casa é um tapete de cadarços. Tem em sua frágil esponja o som dos sapatos que o atravessaram. O musgo é a campainha dos pés. Não é fácil procurar o corpo. Por estar sempre à disposição, o corpo confunde. Ver o corpo não é chamá-lo. Por isso, tardamos a descobrir o que o corpo sente. Precisa vir um amor para me ensinar o próprio corpo. O corpo se maravilha de visita. Meu corpo só se enxerga sendo admirado por uma mulher. Em mim, o corpo é cego. Tanta faz que tenha passado trinta anos com o meu corpo, o corpo não acorda com a minha voz. Quem não doa o corpo, não pode recuperá-lo. Eu sou adepto do corpo. O corpo me ensina mais humildade do que a alma. O cansaço do corpo. Os limites do corpo. Os senões do corpo. Os serões do corpo. O corpo me dobra e me convalesce. O corpo manda, não avisa. Por ele, sei quando devo voltar. Quando devo parar. Quando devo me ajoelhar. Quando devo desistir. Quando devo recomeçar. A alma não, sempre me pede o que não posso fazer. A alma me mata. A alma me condena a não me contentar. A alma é ambiciosa, insatisfeita. No verão, olhava com compaixão os cachorros e os gatos, com sua enormidade de pêlos. No inverno, eles deveriam me olhar com espanto piedoso, estranhando aquele ser imensamente depilado. O corpo é estranho para quem não pensa com ele. O corpo me adapta a morar onde não quero, a criar desejos do nada. O corpo é uma insignificância imaginária. Vejo o modo como ela põe os cabelos para trás, e o corpo quer ser a concha de sua mão. Vejo o modo como ela morde os lábios e o corpo quer ser seu dente da frente. Vejo o modo como ela afasta os quadris e o corpo amarra as duas pernas. Os corpos se esclarecem, as almas complicam. Os corpos não mentem, as almas fogem. Não há como esconder um corpo. O corpo e sua alegria muscular. O corpo e sua euforia de veias. O corpo e sua chuva de olhos no escuro. O corpo me envelhece e me põe a exercitar outras virtudes. Ele muda, mas não me troca. Quando amo, sou inteiro corpo. Muito mais corpo do que alma. O corpo não precisa esperar a noite por uma mulher. O corpo já tem a noite dentro de si. Beije o corpo com suor, não com os lábios. O suor é boca pelo corpo. O corpo se arrepia. A alma se convence. O corpo. O corpo. O corpo. O corpo é essa garrafa que quebro para viver derramado.

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